quarta-feira, 30 de abril de 2014

A partir do NADA!

Até a antiguidade grega, acreditava-se que Deus era o organizador do cosmos, sendo este eterno como Aquele.
 
A busca por Deus se refletia, portanto, numa caminhada de reflexão e contemplação da natureza através da qual a alma humana se eleva até o encontro purificador e salvífico com o seu criador.
 
Com a ascenção do cristianismo ao patamar de religião oficial do estado romano (século IV d.C.), houve a necessidade de se definir uma teologia própria, oportunamente inquestionável, afinal adquirira status político e social. Era mister fundamentar uma identidade própria que estabelecesse uma mensagem objetiva, clara, de fácil  assimilação e que fosse ao encontro dos anseios dos interlocutores.
 
Neste contexto foram sendo firmados os dogmas da igreja ortodoxa: a divindade de Jesus, a santíssima trindade, o cânon, o culto à Maria, o celibato, etc.
 
Foi nesta época, também, que a ideia dos antigos filósofos gregos sofreu uma mudança radical: Deus não é mais o organizador (como pensavam) mas aquele que criou o cosmos à partir do...

Nada!
 
Em um momento qualquer, na atemporalidade de Sua existência, Deus resolveu criar todas as coisas, sem qualquer premissa anterior.
 
Porém, a partir desta nova forma de entender a criação como ato divino absoluto, dois problemas passaram a ser discutidos nos círculos daqueles que ainda resistiam a esta idéia:
 
1.Se nada existia antes, então o mal foi criação de Deus?
 
2.Se Deus criou todas as coisas, é possível dissassociar Deus do objeto criado, colocando o criador e a humanidade em lados opostos, surgindo como consequência, a figura do mediador, cuja atribuição passou a ser habilmente exercido pela igreja.
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 26 de abril de 2014

A Ausência

A ausência derruba qualquer expectativa, apego ou pessoalidade, aponta para um vazio a ser preenchido, a certeza de que a verdade está além.

A ausência de Deus fez com que Israel buscasse Sua transcendência em cada época da sua existência, revendo, reinterpretando, atualizando e reinventando a Lei.


Quando Moisés recebeu a Torá Escrita no monte Sinai, imediatamente uma nova Torá teve início: a Torá Oral.

A Torá Oral não era a mera repetição da Lei (a Torá Escrita), mas as discussões posteriores em torno da Lei buscando ampliá-la e atualizá-la constantemente.

Na Torá Escrita, se considerava o que Deus DISSE!

Na Torá Oral, o que Deus ESTÁ DIZENDO?

Após a destruição de Jerusalém (70 d.C.) os judeus sentiram a necessidade de registrar essas discussões em torno da Lei, que era feita em escolas de rabinos, preocupados em que a tradição não se perdesse com a diáspora: editaram a Mishnah (século II).

Três séculos depois um novo grupo de rabinos entendeu que a Mishnah continha muitos pontos de difícil interpretação e que precisavam de uma nova adaptação aos novos tempos: publicaram o Talmud (que teve duas versões: o Talmud de Jerusalém (séc. V) e o Talmud da Babilônia (séc. VI).


É importante destacar que estas novas interpretações da Lei não tinham a pretensão de a substituírem, pelo contrário, eram um complemento dos textos sagrados, uma espécie de versão ampliada.

Foi desta forma que a fé de Israel sempre se manteve vida, atual, participante da história do povo, e não uma tradição distante e impessoal em que as pessoas deveriam acreditar fria e cegamente.

Os judeus tinham a consciência de que a Lei não era imutável. Adorar a própria Lei seria considerado um ato idólatra.

A bíblia identifica um momento histórico em que essa reinterpretação da Lei acontece: com Esdras, após o cativeiro babilônico (586 a.C.) - o livro de Deuteronômio significa "segunda Lei".

O Novo Testamento, como o nome diz, é o Testamento (velho) reeditado, ou seja, no início da era cristã os novos judeus convertidos interpretavam Jesus dentro do contexto do judaísmo (o messias), sem a intensão de criar uma nova religião ou crença, sendo Jesus, portanto, a nova esperança do Deus ausente que não esquecera do seu povo amado e que agora se manifestava cumprindo sua promessa ao enviar o Messias prometido aos profetas.

O próprio Jesus nos dá o exemplo de como é importante manter atualizada a Lei a partir de uma reinterpretação: "o sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado" (Marcos 2:27).

Constantino no Concílio de Nicéia (Séc. IV d.C.)
Tudo isso mudou quando um homem inteligente, culto e temperamental deliberadamente proclamou, através de um movimento solitário, o rompimento com o judaísmo: Paulo de Tarso. Movimento que, porém, deixou de ser solitário quando um imperador astuto aproveitou para proclamar, politicamente, uma nova religião: o cristianismo.







quinta-feira, 24 de abril de 2014

Um conto judeu!

Um dia o rabino Eliezer se envolveu numa acalorada discussão sobre um aspecto do ensinamento na Torá. 

Como seus colegas se recusassem a acatar sua opinião, ele pediu a Deus que confirmasse seu acerto com uma série de milagres:

Uma alfarrobeira se movimentou sozinha por quatro côvados; 


A água de um canal das proximidades correu para trás; 


As paredes da casa de estudo estremeceram violentamente, como se fossem desabar.




Mas os rabinos não se convenceram e até pareceram desaprovar a superprodução divina.

Desesperado, Eliezer pediu ajuda a uma voz celestial, que prontamente o atendeu: 

"O que tendes contra o rabino Eliezer? A coisa é assim mesmo como ele diz".

Sem se impressionar, um dos rabinos chamado Joshua se limitou a citar a Torá de Deus: 

"Porque este mandamento que hoje te ordeno, te não é encoberto e tampouco está longe de ti.
Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga e no-lo faça ouvir, para que o façamos?
Porque esta palavra está mui perto de ti, na tua boca e no teu coração, para a fazeres."
Deuteronômio 30:11-12-14

A Torá já não era propriedade do céu; ela descera à terra, no monte Sinai, e agora estava guardada no coração de cada judeu. "Por isso não damos ouvidos a uma voz celestial", Joshua concluiu com firmeza.

Dizia-se que, ao escutar isso, Deus riu e falou: 

"Meus filhos me conquistaram, eles cresceram. Em vez de aceitar servilmente opiniões impostas de cima, pensam por si mesmos." (1)


(1) Baba Metziah, A Rabbinic Anthology, pp. 340-I, citado por Karen Armstrong, (Idem) p. 101

quarta-feira, 23 de abril de 2014

"No Novo Testamento, "fé" é traduzido pelo grego pistis (da forma verbal pisteuo), que significa "confiança, lealdade, compromisso, dedicação".

Jesus não pediu para ninguém "acreditar" em sua divindade, porque não tinha pretensões à divindade. Queria dedicação.

Queria discípulos que se comprometessem com sua missão, dessem aos pobres tudo o que tinham, alimentassem os famintos, não se deixassem tolher por laços familiares,  abandonassem o orgulho e a arrogância, não se considerassem merecedores, vivessem como as aves do céu e os lírios do campo e confiassem em Deus, seu Pai.

Deviam comunicar a boa-nova do Reino a todos em Israel - inclusive às prostitutas e aos cobradores de impostos - e levar uma vida de compaixão, não restringindo sua benevolência aos respeitáveis e aos convencionalmente virtuosos.

Essa pistis consegue mover montanhas ao suscitar inesperado potencial humano." (1)







(1) Karen Armstrong, Em Defesa de DEUS (o que a religião realmente significa), Ed. Cia das Letras, p.98

domingo, 13 de abril de 2014

Gêneses, uma interpretação alternativa



A leitura tradicional do capítulo 3 do Gêneses ("A tentação de Eva e a queda do homem") nos remete ao Pecado Original: o homem desobedeceu a Deus e foi irremediavelmente expulso do paraíso.

Porém não era desta forma que os antigos interpretavam este relato.

O Gêneses não foi concebido para ser um relato factual, mas um mito a ser ritualizado nas gerações posteriores.

Não significa, em absoluto, que seja uma farsa, uma mentira deliberadamente concebida para enganar (como na interpretação moderna que se faz das leituras dos textos antigos), mas contém uma verdade profunda que dava sentido e propósito a uma crença coletiva.

O mito era a forma como os antigos não apenas faziam a leitura da realidade à sua volta, mas também como estavam inseridos nesta realidade.

O mito não era para ser acreditado, mas para ser vivido, incorporado, celebrado, a própria essência de uma cultura, seu conceito acerca da vida, do sofrimento, da morte. Era o mito que expressava algum propósito para a vida dos povos antigos naquilo que o logos (racional) não conseguia explicar.

O mito da criação, em Gêneses, era concebido como uma celebração da presença do criador entre os homens: Deus passeia no jardim... como um mortal, um igual.

Os antigos não acreditavam em um Deus no Céu, distante, separado de sua criatura, mas aquele com quem se podia falar face-a-face (no sentido da devoção, é claro).

O capítulo 18 de Gênesis relata um encontro entre Abraão e três varões, quando estava sentado à porta de sua tenda. Estes varões vinham  de uma longa jornada e Abraão os convida a descansar e comer. No decorrer da conversa, vem a grande revelação: um deles era o próprio Senhor, o Deus de Abraão. Um gesto de compaixão leva Abraão a ter um encontro com o divino.

O mito de Adão e Eva pode ser interpretado como o relato da natureza humana: a serpente representa a rebeldia, a compulsão para questionar; Eva representa a sede por conhecimento, a disposição em experimentar, a busca por uma vida livre de restrições; Adão demonstra nossa capacidade em não assumir responsabilidade por nossos atos.

Apenas com o advento do cristianismo a história de Adão e Eva passou a ser interpretado como sendo a teologia do Pecado Original. Uma interpretação muito a propósito do novo sistema institucional a quem interessava separar definitivamente Deus da Sua criação.

O homem, pecador, perdido, irreconciliável, passou a ser refém dos favores da igreja oficial (agência de Deus na terra) para obter algum conforto espiritual durante a sua vida miserável.

As consequências deste ato todos conhecem.


quinta-feira, 10 de abril de 2014

As águas da bíblia

Diversas culturas antigas associam as águas (principalmente o mar) ao princípio do caos.
 
 
 
 
Desde os Sumérios (3.500 a.C.), passando pela Babilônia, vários mitos que tentam explicar a criação emergem de uma tensão entre o caos e a ordem.
 
Na mitologia mesopotâmica, os primeiro a serem criados foram os deuses (a partir do que os antigos denominaram "elemento primordial", uma espécie de matéria-prima elementar).
 
Os primeiros deuses criados foram:
 
-Tiamat (Oceanos);
-Psu (o Abismo);
-Mummu (Caos).
 
Posteriormente outros deuses se sucederam progressivamente até o deus supremo chamado de Marduc (o Deus Sol).
 
Marduc entrou em guerra com Tiamat (o Oceano).
 
Vencido Tiamat, seu corpo foi dividido em duas partes, dando origem ao Céu e à Terra, criando posteriormente o homem a partir da mistura do sangue de um dos deuses vencidos com pó da terra (bem familiar, não é?).
 
O mito da ÁGUA (mar) como representação do caos a partir da qual a vida e a ordem emanam está presente não apenas na cultura judaica como em toda a escritura sagrada, senão vejamos alguns exemplos:
 
-A vida surge das águas (Gêneses) 
-O dilúvio (Gêneses)
-Travessia do Mar Vermelho (Êxodo)
-A conquista da terra prometida após a travessia do Rio Jordão (VT)
-Jonas, em desobediência, cai no Mar e é engolido pelo monstro (Jonas)
-O servo que se banha nas águas e fica curado (VT)
-O batismo de João Batista nas águas (Evangelhos)
-Jesus anda sobre as águas (Idem)
-Jesus acalma a Tempestade no mar (Idem)
-A Besta que surge do mar (Apocalipse)
 
Dos termos destacados acima (em negrito) podemos apreender que ÁGUA no contexto bíblico, pode ser associado a: vida, travessia, conquista, cura, renovação (batismo), poder, tranquilidade. Mas também pode ser associado a elementos do caos: dilúvio, desobediência, o mal (Besta). 
 
Esta explanação nos mostra uma coisa: o Gêneses bíblico encontra paralelo nos mitos das culturas mais antigas que povoaram a região da mesopotâmia, desfazendo a ideia de sua exclusividade e originalidade.
 
Não há, no entanto, qualquer desmerecimento, pelo contrário: mostra que Israel estava integrada à cultura de sua época até a adoção do monoteísmo; o mito era a melhor forma de transmitir verdade (associada a uma vivência ritualistica muito marcante para a comunidade) no mundo pré-moderno (portanto, pré-científico, pré-racionalista).
 
 
 
 





quarta-feira, 9 de abril de 2014

Paulo e "O Caminho" (Tao)


"Na busca do conhecimento, todos os dias algo é adquirido,
Na busca do Tao (Caminho), todos os dias algo é deixado para trás."

"Caminho" é um velho conhecido do apóstolo Paulo:

"Mas confesso-te que, conforme àquele Caminho, a que chamam seita, assim sirvo ao Deus de nossos pais..." At. 24:14

Também há outras referência de Paulo ao "Caminho" no livro de Atos: 19:23; 22:4.

A expressão chinesa do Tao (ou Dao), de onde deriva o Taoismo, refere-se ao "Caminho fundamental do cosmos. Como compreende a plenitude da realidade, o Tao não tem qualidades, nem forma; pode ser sentido, mas não visto; não é um deus; precede o céu e a terra e supera a divindade. Não é um ser, nem um não ser." (1)

Segundo alguns autores, o Taoismo é uma filosofia chinesa que remonta a cerca de 2000 anos a.C. Teria Paulo, homem sabidamente conhecedor de diversas culturas e tradições de sua época, se inspirado no Tao (Caminho) chinês para identificar, naquela nova "seita", a expressão da busca constante pela essência do insondável?


"Trinta raios convergem para o meio de uma roda
Mas é o buraco em que vai entrar o eixo que a torna útil.

Molda-se o barro para fazer um vaso;
É o espaço dentro dele que o torna útil.

Fazem-se portas e janelas para um quarto;
São os buracos que o tornam útil.

Por isso, a vantagem do que está lá
Assenta exclusivamente
na utilidade do que lá não está."


Tao Te Ching (道德經), Cap. 11


(1) Karen Armstrong, Em Defesa de Deus, p.31



segunda-feira, 7 de abril de 2014

Ao Deus Desconhecido

"Uma das condições para obter conhecimento sempre foi a disposição de abandonar o que pensamos que sabemos a fim de avaliar verdades que nunca sequer imaginamos." (1)

Uma frase de um filme me marcou bastante: "é preciso esvaziar o que está cheio e encher o que está vazio." 

Considerando que Deus é aquilo (ou aquele) que nem podemos imaginar, que é um erro afirmar que Ele seja um "ser supremo" conquanto Ele nem mesmo é um "ser", temos que partir do princípio de que aquilo que sabemos (ou pensamos que sabemos) sobre Ele é produto da percepção de uma época, uma cultura, um estilo, e deixar que a Sua suprema ausência preencha aquilo de que realmente precisamos hoje para voltar a praticar a fé e trazer de volta a religião ao lugar em que sempre esteve: o centro de toda a vida humana (social, política, econômica, ética e estética).

Israel mesmo passou por esta experiência quando o templo de Salomão, onde acreditavam que Deus habitava, foi destruído pelos Babilônicos e o povo arrancado de sua terra e de suas tradições. Os judeus, então, tiveram que "reinventar" Jeová. Nasceu o Deus da Torá, a Lei!

"Vemos, hoje, muito dogmatismo religioso e secular, mas também há uma crescente percepção do valor do desconhecido." (1)

Que o "Deus Desconhecido" nos revele hoje aquilo que sobre Si ainda há por ser conhecido (ainda que jamais da sua essência, mas pelo menos na sua contextualização contemporânea).

Amém!


(1) Karen Armstrong, Em defesa de Deus. p.18